segunda-feira, 9 de julho de 2012

Diante do projeto “Universidade Nova”, apresentado pelo Reitor da UFBA, a comunidade universitária, os movimentos sociais e setores sociais não podem se furtar da luta para impedir que a velha agenda destrua as universidades públicas.

 

Roberto Leher

O intento de anunciar um marco temporal com o adjetivo “novo” é uma prática usual na política, utilizada, em geral, para ocultar vínculos indesejáveis com uma situação anterior: Estado Novo, Nova República... Os exemplos são inúmeros. Também nas políticas de educação superior o uso do referido adjetivo é recorrentemente utilizado. Na “Nova” República, na gestão de Jorge Bornhausen no MEC (14/02/86 a 05/10/87), para enfraquecer o pujante movimento que reivindicava a democratização da universidade, o governo lançou o projeto “Nova Universidade” (Geres) que institucionalizava muitos dos aspectos da contra-reforma de 1968. A seguir, no governo Collor, o ministro Carlos Chiarelli (15/03/90 a 21/08/91) apresentou a proposta de "Uma ‘nova’ política para o Ensino Superior”. No governo Lula da Silva, o “novo” muda de lugar passando a ser posposto, e o projeto é então denominado “Universidade Nova”, proposta apresentada publicamente pelo Reitor da UFBA, mas que em tudo coincide com as proposições do MEC (nota 1).
O que justifica o uso dessa qualificação pelos “reformistas” Bornhausen, Chiarelli e Genro-Haddad? A constatação de que a universidade brasileira não está em sintonia com os anseios da sociedade (com Bourdieu, leia-se, do mercado). O maior problema, salientam, é o bolor europeu que recobre a universidade pública, sinal evidente de seu envelhecimento. O diagnóstico é o mesmo do Banco Mundial em seu tristemente famoso “O BM e o Ensino Superior: Lições Derivadas da Experiência” (1994): as universidades públicas, gratuitas, assentadas na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão não servem para a América Latina. Os governos da região deveriam adotar um modelo mais simplificado em instituições não universitárias e, preferencialmente, privadas ou resultantes de parcerias público-privadas a exemplo do Prouni.
Em todos os intentos de contra-reformas dos anos 1980, 1990 e 2000, o objetivo foi ajustá-las às necessidades da sociedade (mercado). Mas como aproximá-las do mercado capitalista dependente sem o risco de uma onda de críticas e mobilizações dos segmentos que insistem que a universidade pública não é uma instituição de e para o mercado? No caso da última moda, a Universidade Nova, a idéia, conforme os seus proponentes, é moldar a “concepção acadêmica” a um contexto que, por força das “demandas da Sociedade do Conhecimento e de um mundo do trabalho marcado pela desregulamentação, flexibilidade e imprevisibilidade, certamente se consolidará como um dos modelos de educação superior de referência para o futuro próximo” (nota 2).
Mais claro impossível: o objetivo é converter o conhecimento em mercadoria ou em insumo para agregar valor a uma mercadoria, conforme requer a dita sociedade do conhecimento. Ora, conforme estudo de Mansfield (nota 3), as inovações tecnológicas não são feitas na universidade, mas na empresa. Assim, o objetivo da Universidade Nova é completamente estranho ao necessário debate sobre a função social das universidades no século XXI (e também ao próprio problema da inovação tecnológica realizada fora da universidade). Se essa primeira indicação não bastasse, o projeto assume, ainda, que a universidade deve formar recursos humanos para um mundo do trabalho desregulamentado e flexível, expressões eufêmicas para designar trabalhadores sem direitos e precarizados. Novamente, cabe indagar: é esse o objetivo da universidade?
Na prática, como seria a “Universidade Nova”? Em termos gerais, a proposta prevê os “Bacharelados Interdisciplinares (BI) que irão propiciar formação universitária geral, como uma pré-graduação que antecederá a formação profissional de graduação e a formação científica ou artística da pós-graduação” (nota 4). A versão do MEC propugna que parte dessas poucas disciplinas deverá ser ministrada por meio de educação a distância, mesmo nos cursos presenciais. Ao final dessa rebaixada formação “o aluno da Universidade Nova poderá enfrentar o mundo do trabalho, com diploma de bacharel em área geral de conhecimento (Artes, Humanidades, Ciências, Tecnologias)” (nota 5).
Com esses cursos invertebrados de curta duração (3 anos), seria possível massificar o acesso ao ensino superior (117% até 2012) (nota 6), reduzindo a pressão por vagas nas instituições públicas, sem a necessidade de maior aporte de recursos e de novos professores e, portanto, perfeitamente ajustada ao Programa de Aceleração do Crescimento que impedirá, por mais de uma década, as correções dos aviltantes salários dos professores e técnicos e administrativos e a contratação de novos servidores.
O injusto gargalo do vestibular – herança da ditadura empresarial-militar para acabar com os excedentes – seria multiplicado por dois: inicialmente, os estudantes fariam o inadequado ENEM e, ao final do escolão aconteceria a seleção meritocrática, no pior sentido da expressão:
· Aluno(a)s vocacionados para a docência poderão prestar seleção para licenciaturas específicas com mais 1 a 2 anos de formação profissional, o que habilita o aluno(a) a lecionar nos níveis básicos de educação;
· Aluno(a)s vocacionados para carreiras específicas poderão prestar seleção para cursos profissionais (p.ex. Arquitetura, Enfermagem, Direito, Medicina, Engenharia etc.), com mais 2 a 5 anos de formação, levando todos os créditos dos cursos do BI;
· Aluno(a)s com excepcional talento e desempenho, se aprovados em processos seletivos específicos, poderão ingressar em programas de pós-graduação, como o mestrado profissionalizante ou o mestrado acadêmico, podendo prosseguir para o Doutorado, caso pretenda tornar-se professor ou pesquisador (nota 7) (grifos e destaques meus).
Embora a proposta seja, à primeira vista, clara, o que facilita o debate público, os autores não mantêm a mesma clareza ao longo de todo o Documento. Nenhum projeto afirmaria que seu único objetivo é adequar a instituição ao mercado capitalista dependente e ao trabalho precarizado. Assim, ao longo do Documento, os autores buscam justificativas epistemológicas (interdisciplinaridade) e sociais (a especialização precoce que estaria na base da evasão estudantil) para legitimá-lo. Frente aos grandes objetivos da proposta apontados acima e ao seu conteúdo concreto (uma terminalidade minimalista), este texto não privilegiará essa linha de discussão, claramente acessória e ornamental, pois o cerne é o ajuste ao modelo Banco Mundial/ OCDE-Bolonha/Schwartzman (nota 8)/ MEC.
O processo de Bolonha propugna a criação de um espaço europeu de educação superior que, na ótica dos que mercantilizam a educação, pode significar um robusto mercado educacional: essa é a expectativa da OCDE-Unesco que incentiva a difusão do comércio transfronteiriço de educação superior por meio da EAD. O modelo preconizado pelo Relatório Attali, a graduação genérica em três anos, representa a possibilidade de um sistema abreviado e massificado que os mercadores gostariam de ver difundido em toda a Europa. Os que adotam o espelho europeu para ver a ‘realidade brasileira´ fingem esquecer que está em curso na Europa um outro processo de articulação das instituições de ensino superior, reunindo apenas as universidades de maior prestígio e de tradição em pesquisa. Assim, estão em curso na Europa dois níveis de integração:
a) a do Pacto de Bolonha: nos moldes dos “escolões” que servem de barreira de contenção para que apenas uma pequena parcela tenha acesso à graduação plena, capaz de assegurar uma determinada formação, legitimando a precarização generalizada da maioria (no caso francês, 80% dos estudantes);
b) a das instituições de excelência, objetivando formar as classes dominantes e produzir conhecimento estratégico.
Tardiamente, esse modelo chegou como um paradigma a ser seguido nas políticas para a universidade brasileira, justo em um momento em que é consolidado o consenso na comunidade acadêmica de que a chamada reforma da educação superior expressa no PL 7200/06 é perniciosa para o futuro da educação pública. No Brasil, o modelo Attali/ Simon Schwartzman/ MEC é difundido como a nova “alternativa genial” da estação. Tal como o PROUNI, apresentado como “idéia genial” que possibilitaria vagas ditas públicas sem que o Estado necessitasse desembolsar um centavo sequer, o projeto Universidade Nova objetiva ampliar o número de vagas para estudantes nas instituições públicas sem alterar o padrão medíocre de financiamento da educação. A ausência de recursos novos para a educação superior pública (confirmada pelo PL 7200/06) é o fulcro do debate sobre as alternativas de graduação aligeirada.
Caberia uma análise específica das conseqüências desse modelo de bacharelado para as instituições privado-mercantis. Falar em barbárie é pouco para caracterizar essas implicações.
A comunidade universitária, os movimentos sociais e os setores sociais devotados à causa da educação pública não podem se furtar da luta para impedir que a velha agenda, sob o manto do “novo”, destrua o importante patrimônio social que são as universidades públicas. No âmago dessas lutas, os protagonistas terão de discutir uma agenda alternativa para a educação superior brasileira com proposições objetivas e originais capazes de empolgar outros setores sociais, em especial da juventude. As lutas na América Latina confirmam que as universidades, embora instituições milenares, são instituições abertas ao tempo. Por isso, não podemos esmorecer frente a mais essa ofensiva contra-reformista, assumindo papel protagonista na defesa de uma agenda capaz de revolucionar a universidade brasileira.
Notas
1) No âmbito do MEC, os fundamentos do Projeto Universidade Nova estão no Projeto de Lei Orgânica (versão de dezembro de 04) que previa graduação em três anos (Art. 7) e o desmembramento da graduação em dois ciclos, o primeiro deles de “formação geral” (Art. 21). Conforme matéria de Demétrio Weber (MEC planeja criar 680 mil vagas nas federais, O Globo, 14/2/07, p.8), o MEC assume o projeto Universidade Nova e, para submeter as universidades ao projeto, irá exigir, em contrapartida ao repasse de modestos recursos (cerca de R$ 600 milhões /ano), a adoção da “pré-graduação” (3 anos), o sistema de cotas (em uma acepção liberal), a substituição do vestibular pelo precário ENEM, o uso da educação a distância, mesmo em cursos presenciais, entre outras medidas. Na matéria está explícito que o repasse condicionado de recursos objetiva burlar a autonomia universitária.
2) Universidade Nova: Descrição da Proposta. Em http://www.universidadenova.ufba.br/, acesso em 12/02/07.
3) Mansfield, Edwin 1998 Academic research and industrial innovation: An update of empirical findings Research Policy 26, p. 773–776
4) Universidade Nova: Descrição da Proposta (op.cit)
5) Idem.
6) Demétrio Weber, op.cit.
7) http://www.universidadenova.ufba.br/arquivo/Projeto_Universidade_Nova.doc
8) No período mais recente a proposta de um curso “genérico” e de curta duração foi retomada por Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE na gestão Cardoso. Ver Antônio Góis. Sociólogo defende curso de curta duração para carentes. FSP, 03/06/2002. Em linhas gerais, a mesma alternativa é defendida no modelo Universidade Nova, difundida pelo reitor da UFBA.

Professor da Faculdade de Educação da UFRJ e de seu do Programa de Pós-Graduação, pesquisador do CNPq, coordenador acadêmico do Outro Brasil (Instituto Rosa Luxemburgo) e do Observatório Social da América Latina- Brasil do CLACSO

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