Escrito por Léo Lince
Sex, 01 de Julho de 2011 00:28
O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, bordejou a morte na tragédia de Trancoso. Vidas inocentes ceifadas, perda de amigos, o risco de estar ele próprio no helicóptero que caiu, são acontecimentos capazes de provocar abalo até no mais insensível dos mortais. Apesar de tantos abalos, a maior preocupação do governador, a julgar pelas providências tomadas após o fato lutuoso, foi com a própria sobrevivência política.
Por incrível que pareça, circulam até hoje versões desencontradas sobre a viagem do governador ao sul da Bahia. A primeira tentativa, baldada, foi ocultar o motivo da viagem. Como não deu para abafar o caso, a primeira versão oficial dizia que o governador fora amparar o filho, depois do acidente que vitimara sua namorada. Era mentira deslavada. Durou pouco.
A segunda versão oficial, sustentada até agora, fala em viagem de lazer após um expediente encurtado da sexta-feira. No meio da tarde, em jato emprestado pelo indefectível Eike Batista, o governador se deslocou com familiares para uma festinha de empreiteiros, aniversário de amigo e grande executor de obras públicas. Há, para tal versão, o registro da saída no aeroporto Santos Dumont, sem que se saiba com quais passageiros, mas não há registro de chegada da mesma aeronave em Porto Seguro.
Para ampliar o mistério, uma terceira versão não oficial. O prefeito de Porto Seguro afirmou, em entrevista, que o governador já estava na cidade desde a manhã de sexta-feira. Por outro lado, o jornal “O Dia” fala de um helicóptero que saiu lotado na manhã do mesmo dia, direto do heliporto da Lagoa, no Rio, para a Bahia. O mesmo helicóptero que caiu no mar, conduzido pelo mesmo piloto, de habilitação vencida, que morreu no acidente.
A dificuldade em assumir coisas elementares (o objetivo, quando e como a viagem se deu) resulta da tentativa atabalhoada de ocultar questões maiores. O problema, a encalacrada em que se meteu o governador, é que os holofotes postos sobre a tragédia lançaram luz sobre uma extensa malha de ligações perigosas, que a canção popular definiu como “tenebrosas transações”. Aquela intimidade promíscua que invoca falcatruas entre governantes e potentados da economia. Praticada à larga nos tempos atuais, ela segue capitulada como crime na legislação vigente.
Até as pedras da rua sabem que o padrão dominante na política brasileira está marcado pela supressão momentânea da linha que separa o público do privado. Chamam de sinergia o que não passa de promiscuidade. Os governantes se oferecem como serviçais da máquina mercante, e operam com destrambelhada desenvoltura. Ao mesmo tempo, a aura de sacralidade que antes envolvia o poder público continua habitando o universo abstrato da letra da lei. Paradoxo.
Daí porque, sempre que alguma luz se projeta sobre as transações entre governos e magnatas do setor privado, o governante analisado corre sérios riscos de ser submetido à execração pública. Este mês de junho, por exemplo, começou com o foco voltado para as consultorias do Palocci e vai terminar tratando das contratações do governo Cabral. Ele foi se banquetear no paraíso dos miliardários e acabou no pelourinho. São os acidentes no percurso que fazem girar a rotatória do destino.
O governador Cabral é um modelo típico-ideal do padrão dominante na atual política brasileira. Para ele, governar é intermediar grandes negócios e agenciar espetáculos. Deslumbrado com o poder e suas benesses, ele trabalha para os poderosos com alegria e método. O movimento emblemático dos bombeiros, a greve dos professores, a crise da saúde, o colapso de todos os serviços públicos essenciais, nada disso importa diante do “momento mágico” e da exuberância irracional dos megaeventos.
Ainda não se sabe ao certo os rumos da crise desencadeada com a tragédia de Trancoso. Uma coisa, no entanto, é certa: houvesse cidadania vigilante, ou instituições republicanas dignas deste nome, o governador estaria com seus dias contados.
Léo Lince é sociólogo.
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